segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Concursos da TV

Nos últimos anos têm proliferado os concursos/reality shows na TV. É programas para concorrentes que querem perder peso, outros que querem ser chefs, outros que constroem casas para depois vender, outros que querem ser cantores ou bailarinos, outros têm um talento para mostrar, etc, etc...
Mas aqueles em que me gostaria de focar hoje são os concursos como MasterChefs, Ídolos, The Voice e Factor X. Para mim, todos eles têm a mesma característica em comum: pretendem produzir um profissional numa área artística em muito pouco tempo (vá lá, um protótipo) e exercendo um grau de stress elevado em todo o processo. No fundo, estes programas criam a ilusão de que um chef de cozinha pode ser formado em poucos meses ou que um cantor pode aprender a cantar também em pouco tempo. Para além disso, é uma aprendizagem sob stress e em que as falhas praticamente não são toleradas (os concorrentes têm tantos aspectos em que se focar, claro que há-de haver alguma falha).

O que acontece nestes concursos contraria a vida real em termos de tempo de formação e no pelo facto de que os concorrentes quase não têm margem para cometer erros e, se os cometerem, é porque são fracos e não merecem vencer. E nunca serão ninguém porque falharam quando não podiam. Aqui segue-se a mentalidade do loser à lá EUA (o falhado, o perdedor). Na vida real, uma das poucas situações que me ocorre em que quase não se pode falhar é no dia dos exames nacionais do 12º ano. E ainda assim, pode-se repetir o exame.

Gosto mais do MasterChef Austrália do que o dos EUA. O primeiro é bem-disposto, parece haver alguma camaradagem (apesar da competição) e cozinham com alegria. Talvez fruto da postura descontraída dos autralianos. No segundo, há um enorme stress provocado pelos jurados, pela exigência, pelas falhas que cometeram em cada prato e pelas expectativas (do jurados) que não cumpriram. E o espírito de competição é horrível, gerando ódios e desejos de que fulano seja eliminado na prova seguinte. Se se diz que a comida confeccionada com amor sabe ainda melhor, não sei como saberão aqueles pratos produzidos em clima de quase terror, ansiedade, ambição de vencer só para não ser um loser e desejo de pisar o adversário... Devem ser pratos cheios de boas energias... Às vezes tenho pena dos americanos por terem de viver num ambiente tão competitivo, onde só há o sucesso e o insucesso, a vitória e a derrota, o vencedor e o perdedor, que ao falhar naquele momento nunca terá a hipótese de deixar esse rótulo.

Mas voltando à ideia inicial, são concursos de fazer "profissionais" à pressão (1). No caso dos concursos Ídolos, Factor X, The Voice e outros, colocam pessoas habitualmente jovens, pouco experientes, raramente com estudos em música, a ensaiar canções semana após semana e lá conseguem apresentar algo mostrável (ainda assim bastante digno; eu não faria melhor). Tal como nos concursos dos chefs, estão a aprender à pressão (2), para se sujeitarem ao público nacional na TV e ao internacional porque hoje em dia tudo vai parar ao Youtube. E semana após semana um dos concorrentes é eliminado porque as regras dizem que sim ou porque é menos bonito do que os outros e porque vencedor só pode haver um. E quando alguém é eliminado chora desalmadamente, como se as oportunidades de trabalhar na música se tivessem esgotado para sempre. Não lhe explicaram que vão ser todos eliminados menos um, que é o vencedor (3)? E logo hoje em dia que há tantos concursos. Não passam num, podem tentar noutro. Ou vão estudar numa escola de música, em que aprendem mais e de forma mais sólida do que num concurso (sim, demora mais tempo, mas queriam fácil e rápido?).

E quanto aos títulos dos concursos: Ídolos, The Voice, Factor X. Já houve algum vencedor que se tivesse tornado num ídolo? Já houve algum detentor de uma voz extraordinária? Já houve algum vencedor que tivesse uma característica (factor) tão única que até o fizesse brilhar no escuro? Talentos assim surgem em pequenas quantidades e uma vez em décadas. E ainda assim, seguem-se temporadas e temporadas deste tipo de concursos. Assim quase que se banaliza o talento. 

Todos têm direito a serem talentosos e a lutar pelos seus sonhos aproveitando os seus talentos, mas a maioria das pessoas só vai conseguir atingir o sucesso se trabalhar, se se aperfeiçoar e dedicar com muita vontade ao seu "talento". E isto requer tempo (4). E que os concursos não dão. Por isso, depois do concurso, os chefs (os vencedores) terão de estagiar com chefs mais experientes e trabalhar muito. E os cantores vencedores terão de trabalhar mais a sua voz, tomar consciência das suas características e, na prática, terão de receber algum tipo de formação que lhes permita movimentarem-se no meio de outros músicos. Senão serão apenas bons papagaios de karaoke para as canções que praticaram naquelas semanas. No fundo, pode-se ver estes concorrentes como um estudante que terminou a sua licenciatura com 18, mas que só no mercado de trabalho é que vai perceber se é realmente bom. E mesmo assim ainda terá muito para evoluir.

Gostava que estes concursos tivessem uns pequenos momentos para ensinar algo ao espectador. Como no Querido Mudei a Casa que em alguns segundos dá umas dicas de bricolage e afins. Nos concursos de chefs podiam explicar o significado de "beringir" ou "selar a carne", só para dar exemplos. O espectador agradecia.
Ah e podiam pedir aos espectadores que confeccionassem os pratos mostrados no concurso e depois carregassem os vídeos do resultado. Os melhores recebiam prémios. É só uma ideia...

Notas: 
(1) claro que o objectivo não é esse. Isto é a indústria do entretenimento, é para entreter. Mas a mensagem que passa é que alguém entra, faz umas provas e torna-se muito bom. E os anos de treino e de empenho antes da entrada no concurso?
(2) Esta exigência de aprendizagem rápida é reflexo dos tempos de hoje. Temos de ser bons, rápidos a apanhar tudo o que nos dizem, não nos esquecermos de nada, equilibrados a todos os níveis, fluentes em uma ou mais línguas estrangeiras e não se pode falhar, principalmente quando há pressão...
(3) Na realidade, aqueles que demonstram valor são contactados posteriormente por alguém da indústria ou encontram emprego como apresentadores ou modelos.
(4) Mesmo os músicos profissionais demoram meses ou anos a aprenderem e aperfeiçoarem as suas canções para que estas lhes saiam naturalmente. Nestes concursos, os concorrentes têm habitualmente uma semana para ensaiar. Só têm as vantagens de já terem ouvido a canção muitas vezes e de poderem dar a sua interpretação em vez de seguirem o original.

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