quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Os cachorrinhos que não sabiam brincar

Era uma vez dois cachorrinhos, Alpha e Apolo, que viviam numa casa de família. Um casal com um filho e uma filha.

Os cachorrinhos eram alegres, brincalhões e cheios de energia. Quando chegavam os donos, os cachorrinhos de imediato saltavam de alegria e ladravam à volta deles. Os donos, casal mal-disposto e sisudo e os filhos, crianças à imagem dos pais, rapidamente travavam tal agitação. Aproximavam-se dos cachorinhos e batiam-lhes na cabeça com o pau de uma vassoura velha dizendo-lhes "Párem já com esse barulho, já não os posso ouvir. Querem que vos mande para a rua?" Os cachorrinhos, ainda tontos com as pancadas, acalmavam e encolhiam-se a um canto escuro, na esperança de que os donos ali não os vissem e achassem que ali estariam a ter o comportamento correcto. A pouco e pouco os cachorrinhos perdiam a sua alegria natural. Pouco ladravam, pouco se mexiam. Já sabiam que não valia a pena demonstrarem sinais de alegria junto dos seus donos, embora naqueles momentos em que os donos estavam fora, aproveitassem para brincar um pouco um com o outro e fazer tudo aquilo a que um cachorrinho instintivamente anseia por fazer. 
Passaram-se alguns anos e os cachorrinhos tornaram-se cães magros, pairando pela casa, sem motivação para viver cada novo dia. Os donos continuavam a ser severos sem razão aparente, pois Alpha e Apolo sempre foram bem comportados e obedientes. Um dia, os donos trouxeram para casa um cachorrinho. Alpha chegou-se ao pé dele e perguntou-lhe:
- Como te chamas?
- O meu nome é Juba. Foi a filha dos donos que me deu o nome. No princípio não gostei muito, mas agora já me habituei.
- Bem-vindo à nossa casa Juba. Chamo-me Alpha. O que vieste cá fazer?
- Bem, acho que a filha dos donos queria um cachorrinho porque vocês não brincavam com ela e ouvi os donos a dizerem que os cães da casa já eram velhos e que se calhar era melhor trocá-los por um mais novo. Por isso, aqui estou eu...
- Oh, mas se eles estão sempre a bater-nos e a ralhar-nos porque brincamos e saltamos! - disse Apolo.
- É verdade Apolo, mas tens de ver que eles não compreendem isso. Não podemos fazer nada, eles são mesmo assim. - disse Alpha.
- Aqui com o Juba vai ser diferente. Comigo vamos conseguir brincar, saltar, ladrar e a tudo a que temos direito!
- Vai com calma Juba...Isto aqui não é assim, vais perceber que não é tão fácil como pensas... - disse-lhe Alpha.

Os dias passaram e Juba, sendo irrequieto e bem-disposto, corria e ladrava pela casa. Desta vez, os donos não lhe ralhavam, mas Alpha e Apolo não deixavam de ser alvos dos sermões dos donos. Era por estarem sempre na casota ou por deixarem um pouco de comida na tigela ou porque haviam meia-dúzia de pêlos junto à casota. Por tudo e por nada. Ainda assim, Juba sentia-se livre e feliz por viver naquela casa. Mas também observava Alpha e Apolo. Será que ele um dia seria como eles? Os donos começariam a ralhar com ele e a impedi-lo de brincar, como ele tanto gostava?...

Um dia, Alpha ficou doente e os donos levaram-no ao veterinário. Quando regressaram a casa, Alpha não estava com eles... Juba e Apolo perceberam que Alpha nunca regressaria e que a partir daquele momento seriam apenas os dois. Juba crescia rapidamente e já conhecia todos os cantos da casa. A filha do casal raramente brincava com ele, por isso a maior parte do tempo era passada com Apolo, que agora era o seu modelo, o seu companheiro de brincadeiras... Mas não muitas brincadeiras. Sempre que estava a brincar com Apolo e os donos chegavam, começou a sentir uma certa reprovação e um dia a dona até lhe disse "Juba, és um cachorro muito mau. És feio!" 

Juba percebeu naquele momento que a sua vida tinha acabado de mudar. Os seus dias de correrias e brincadeiras não voltariam. Finalmente, entendeu o que Alpha e Apolo lhe disseram no dia em que se conheceram. Ele não era diferente dos outros, seria o próximo Alpha ou Apolo. Após aquela frase forte da dona, encolheu-se e muito devagarinho foi deitar-se amuado na sua casota pequena e húmida. Juba pensava "Eu não sou mau nem feio. Por que disse ela aquelas coisas? Talvez eu deva começar a correr menos ou estar mais sossegado para os donos não ralharem comigo. Talvez fiquem contentes comigo." Assim o fez. Juba mudou. Já não ladrava, não corria, não saltava, comia tudo da sua tigela e não mordia nem uma pontinha do tecido do sofá. Era agora tristonho e mole. Mas nem assim os donos paravam de reclamar com Juba e Apolo. Encontravam sempre algo para lhes apontar. Apolo já nem ligava, de tanto que sofreu, mas Juba tinha um espírito que o impedia de se conformar completamente. Só não sabia o que mais fazer. Qualquer acção sua, boa ou má, tinha o mesmo resultado.

Às vezes, os donos tinham outras pessoas lá em casa, amigos ou vizinhos. Uma das vezes, a dona e outra mulher foram à cozinha, onde estavam Juba e Apolo nas suas casotas, meio a dormir, meio na esperança de não voltarem a acordar. A mulher disse para a dona:
- O que têm os teus cães? Parecem tão mortiços...
- Sei lá, sempre foram assim. Dou-lhes comida e água todos os dias. Não têm razão para estarem sempre deitados. Já o outro cão que tivemos era assim...
- Sim, mas olha que não é normal os cães estarem com este aspecto. Costumas fazer-lhes festas, passear com eles ou assim?
- Ora, precisam lá eles de festas e de passear. Eles bem podem andar pela casa e se lhes der mimo é que não me têm respeito. E nem tenho tempo para isso.
- Pois, tu é que sabes, mas a minha opinião é que eles deviam ter mais actividade, senão qualquer dia ficam doentes...
Entretanto, a dona e a outra mulher voltaram para a sala onde estavam os respectivos maridos e filhos. Juba e Apolo continuaram tal como estavam nas suas casotas, como se ninguém tivesse por ali passado sequer.
No dia seguinte, a dona passou pelas casotas e, ao ver Juba e Apolo deitados, lembrou-se da conversa do dia anterior. Será que a amiga teria razão? Afinal ela também tinha cães em casa, alguma coisa saberia. Lembrou-se de que quando Alpha ficou doente, o veterinário lhe disse que ele tinha aspecto de não libertar as suas energias, o que em alguns casos afectava o peso. Pensava a sério nisso pela primeira vez. A magreza de Alpha também era a consequência da redução do seu apetite, algo a que a dona nunca tinha dado importância. Talvez quando lhe ralhava constantemente por ter deixado comida na tigela ela deveria ter reparado. Mas agora era tarde. Já não podia fazer nada por Alpha.

Como que iluminada, a dona chegou-se ao pé de Juba e Apolo, abaixou-se e fez uma festa na cabeça de Juba, talvez por ser ainda cachorrinho e mais engraçado do que Apolo. Juba despertou e sentiu uma estranheza naquele gesto. Não conseguia tirar grande prazer daquela festa, pois tinha um misto de desconfiança sobre o que viria a seguir com o bem que sabia aquele toque. A dona continuava a fazer-lhes festas e ganhou coragem para as estender a Apolo com a outra mão. Agora era Apolo que se via agraciado com aquele toque suave, mas que se podia, a qualquer momento, transformar numa dor causada por um pau de vassoura. Essa dor já ele conhecia, por isso mais valia aproveitar a massagem sobre a sua cabeça. De seguida, a dona levantou-se e Juba e Apolo encolheram-se rapidamente pois vinha aí a esperada pancada acompanhada pelas palavras duras. Mas em vez disso, a dona disse-lhes:
- Juba, Apolo, vamos! Levantem-se, vamos correr lá para fora!
Abriu a porta da cozinha que fazia ligação ao quintal e fez-lhes sinal para avançarem. Juba e Apolo não entendiam o que estava a acontecer. Será que lhes ia bater lá fora? O que tinham feito desta vez?
Lentamente e a medo, levantaram-se e dirigiram-se à porta.
- Juba, Apolo, vamos brincar! - disse a dona numa alegria que a própria ainda estava a treinar.
- Raqueeel! Pedrooo! Venham para o quintal brincar com os cães!
As duas crianças ainda demoraram a chegar, mas vieram a correr sem perceber o que tinha dado à mãe para querer brincar com os cães.
 Estavam agora todos no quintal, em cima da relva onde havia bastante espaço para os cães correrem, escavarem e morderem na mangueira espalhada ao longo da relva.
Juba e Apolo estavam ainda na expectativa do que iria acontecer. Não fazia sentido aquele novo comportamento...
- Apolo, Juba apanhem o disco, corram!
Apolo e Juba viram o disco a percorrer o ar, sentiram o instinto de correr para o apanhar, de o morder até à exaustão, mas ficaram imóveis. Paralisados. Tinham controlado tanto os seus instintos e desejos que agora não reagiam. Sabiam o que queriam fazer, mas ao mesmo tempo não o faziam, tinham medo das consequências. 
Por fora, eram cão e cachorrinho, mas os cachorrinhos que tinham sido há muito tempo atrás aprenderam a não brincar, e agora, no presente, já não sabiam brincar...


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